Outras vezes, o mar é traduzido para o discurso das artes e da criação em geral como simples alegoria, embora este registo tenha pouca tradição entre nós e mesmo na cultura europeia ocidental 2.
Por sua vez, nos media e noutras abordagens de intenção realista, o “mar português” ora surge como um mundo condenado ao definhamento, ora se apresenta como solução estratégica para dobrar o problema histórico do atraso económico do país 3.
Nesta visão dialógica – por um lado decadentista, por outro salvífica e tecnocrata – assentam as “representações” mais comuns do papel do mar no desenvolvimento de Portugal. Visão dual que raramente integra o papel da cultura nos planos de revalorização dos recursos marinhos. Em regra, a Cultura do Mar, tal como a vimos definindo, não é considerada um elo das cadeias de valor geradas pela “economia marítima” portuguesa nem tão-pouco um elemento de coesão social.
Não por acaso, durante os primeiros trinta anos de regime democrático, de 1976 ao começo do século XXI, o mar e as suas realidades foram domínios quase ocultos na agenda política portuguesa.
Em regra, os assuntos do mar têm sido domínios favoritos do património discursivo dos partidos de franja do espectro político que regularmente habita o poder e define as políticas públicas. À direita, o CDS-PP tende para a exaltação tradicionalista de um mar alegadamente desbaratado e insiste na defesa das actividades marítimas tradicionais como símbolos de soberania nacional; à esquerda, o PCP tende a evocar os problemas sociais associados ao declínio da economia marítima tradicional, insistindo na cooptação realista do tipo-colectivo dos “trabalhadores do mar”.
As elites económicas e militares ligadas às actividades marítimas tradicionais (defesa naval, comércio marítimo e pescas industriais), embora interessadas em promover uma certa Cultura do Mar, tendem a expressar a sua militância nostálgica em rituais cerimoniosos e bastante hierarquizados, embora legitimados pela participação do povo enquanto espectador: desfiles navais que evocam a pretensa glória do passado recente, iniciativas culturais celebrativas do elitismo da cultura náutica, comemorações históricas associadas às viagens de descobrimento e outras iniciativas. Embora legítimas, estas práticas reprodutoras exprimem entendimentos restritivos da Cultura do Mar. Visões ora assentes numa difusa ideologia navalista, ora baseadas numa lógica de mera evocação do pitoresco ou mesmo do exótico.
2 Michel Mollat du Jourdin, A Europa e o Mar, Lisboa, Editorial Presença (trad.), 1995, p. 241 e ss.
3 Para uma reflexão mais detida sobre esta problemática, v. A. Garrido (coord.), A Economia Marítima Existe, Lisboa, Âncora Editora, em especial pp. 9-16.
Discursos sobre a maritimidade portuguesa
Os portugueses têm pelo mar um apreço inquestionável. Cultivam-no, porém, de forma dominantemente lírica e superficial, como se de uma memória de infância se tratasse.
Sobre os argumentos materiais da geografia e sobre factos salientes da história alaparam-se discursos lendários acerca da maritimidade portuguesa, qual vocação irreprimível de um povo cuja identidade se hiperboliza mas que pouco se debate 4.
Sintomaticamente, a “cultura portuguesa” – aqui entendida num sentido aberto, não apenas erudito ou académico –, muito rica em etnografias sobre o mundo rural, nunca gerou uma antropologia marítima. Nem mesmo a respeito das comunidades de pescadores, salvo algumas excepções de âmbito local 5.
Crónicas de viagem, poemas mais e menos épicos, mitos e profecias, pinturas marinhistas, simples gravuras e postais, prosas de tragédia e relatos dos feitos do império, do império que no mar se fez, compõem uma vasta etnografia da maritimidade portuguesa. Trata-se de uma panóplia de discursos e imagens que, exceptuando alguns trabalhos da extinta Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 6 e uma ou outra iniciativa de museu, as “elites cultas” nunca cuidaram de pôr em colectânea nem tão-pouco interpretar nos seus remotos sentidos.
Historicamente recentes e fundadores de uma relação cada vez mais íntima e massificada com o mar, bem expressa nos hábitos de “ir a banhos” e das “férias de praia”, são os padrões de relacionamento alienante com o mar, atitude social muito marcada por uma lógica hedonista. Com frequência, o mar é apenas a praia, uma aprazível enseada de consumo destinada a turistas e “empreendedores”; para as gentes do mar, porém, o mar é uma fronteira quotidiana, um lugar de vida, talvez uma mundividência.
Não obstante a diversidade da relação que a sociedade portuguesa estabelece com o mar, “pactos de sangue” pouco se notam neste enlace que o tempo foi afastando de uma vivência e leitura românticas, muito apegada aos sentidos - ao encantamento e mesmo ao drama.
4 V. Elsa Peralta, A Memória do Mar. Património, Tradição e (Re)imaginação Identitária na Contemporaneidade, Lisboa, ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa, 2008.
5 Para um belo estudo da comunidade poveira de pescadores, veja-se Luís Martins, Mares Poveiros. Histórias, ideias e estratégias de pescadores da Póvoa de Varzim, Póvoa de Varzim, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim/Academia de Marinha, 2007.
6 A título de exemplo, cf. os números 45 e 47/48 da revista Oceanos, editada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
III. Linhas para um programa de acção
Deve o Estado abster-se relativamente à adopção de políticas de promoção da Cultura do Mar? Ou será mais sensato confiar essa ambição à “sociedade civil”, potenciando a espontaneidade das suas dinâmicas, conferindo privilégio à sensibilidade dos actores locais, dando voz às próprias comunidades marítimas?
Os deveres de Estado: geopolítica e Cultura do Mar
Por tradição e ousadia, Portugal tem desenvolvido muitos esforços para se afirmar como “Estado marítimo” de primeiro plano nas organizações internacionais de governação do Oceano. Essas iniciativas têm sido reconhecidas pela comunidade internacional.
A Zona Económica Exclusiva de Portugal, definida por lei em 1977, significou uma mudança profunda na relação do país com o mar e na organização da economia marítima portuguesa. Mudança jurídica, num primeiro plano; alteração estratégica e económica, em segundo lugar; mudança cultural, também.
A dimensão concreta do “mar português”, a nossa posição geográfica e o conhecimento acumulado na tradição das indústrias marítimas, têm justificado apelos de “regresso ao mar” e inspirado planos de reconversão das suas cadeias de valor.
Alguns factos enquadram essa vaga aspiração de retorno ao mar, por ora uma ambição pouco estratégica e, por isso, pouco sistémica: a partir dos anos oitenta do século XX decaíram as actividades marítimas tradicionais: a pesca, o transporte de mercadorias e a construção naval.
Negócios muito ligados entre si, a navegação, as pescarias e a construção/reparação de navios eram ofícios de grande expressão social e cultural. Durante vários séculos, as frotas de guerra, de comércio e de pesca foram símbolos de soberania de um Estado-nação marítimo que, embora dotado de um extenso mar territorial, nunca deixou de se projectar noutros espaços. Quer por impulsos imperiais, quer por necessidade de aceder à exploração de recursos alimentares noutras regiões oceânicas 7 . Também aqui as lógicas mudaram.
Nos nossos dias, a Ciência continua a gerar tecnologia e conhecimento aplicáveis ao mar; recursos do saber que animam a criação de indústrias novas e alternativas, muito exigentes em termos tecnológicos e altamente qualificadas em recursos humanos.
Que sustentabilidade poderá ter este processo de reconversão dos usos do mar se não contar com o sedimento da cultura? Que importância terá o mar no desenvolvimento de Portugal se a herança marítima não for socialmente relevante e culturalmente espessa? Considerando o peso simbólico do “mar português” e as potencialidades económicas da Zona Económica Exclusiva do nosso país, a Cultura do Mar deve ser encarada como expressão de soberania, mas também de identidade. Seja numa perspectiva eminentemente patrimonialista do mar, seja numa abordagem prática-funcional, ou de incentivo à inovação como factor de desenvolvimento das indústrias marinhas.
O grande apelo da Expo 98, “Os Oceanos – um Património para o Futuro”, abriu diversos caminhos para refazer a relação histórica, quase mítica, de Portugal com o mar. A inscrição internacional de uma renovada imagem da vocação marítima do País fortaleceu a sua inclusão na comunidade de países e organizações intergovernamentais que comungam de uma visão moderna dos problemas oceânicos.
Inúmeras questões relacionadas com a Cultura do Mar foram objecto de socialização nos espaços e discursos da grande exposição de Lisboa. Os efeitos mais persistentes desses meses de fulgor cultural e mediático foram a inclusão dos Oceanos em programas públicos de educação científica. De maneira consciente e involuntária, o “efeito Expo 98” penetrou nas instituições e em menor parte na sociedade civil; animou alguns investimentos públicos no âmbito das autarquias locais 8 ; tornou-se um móbil e uma referência da Cultura do Mar.
No final do século XX, a consolidação da ideia de que os Oceanos formam uma única entidade dinâmica ajudou a depor as velhas noções de “mar nacional” e de “mar soberano”. Neste quadro globalista e fortemente regulado em matéria de Direito público relativo à exploração dos recursos marinhos, a valorização económica e social das pescarias locais e costeiras por parte da União Europeia acabou por ter repercussões culturais.
Perante a hipertrofia normativa expressa na Política Comum de Pescas e a difícil legibilidade da regulação comunitária relativa ao “esforço de pesca” (capacidades dos barcos e características das artes), os pescadores foram criando, eles próprios, novas dinâmicas de expressão sociocultural. Nomeadamente, em defesa da cultura material e imaterial dos seus colectivos que, entretanto, os poderes públicos locais e o mundo académico se apressaram a recensear para fins diversos; em regra para promover a integração do património cultural marítimo em circuitos de produção-consumo turístico.
Alguns desses projectos, inspirados em experiências inclusivas ensaiadas em países nórdicos, assentam num conceito ecossistémico de património: elegem os próprios pescadores como inventariantes do património de que são produtores, em estreita articulação com cientistas sociais, museólogos e técnicos do património.
A revalorização das culturas locais que habitam em territórios marítimo-fluviais e a indexação dos respectivos patrimónios em redes digitais de informação tendem a gerar mais conhecimento em torno da Cultura do Mar e a despertar a consciência social para a riqueza desses singulares arquivos de cultura.
O projecto europeu Celebração da Cultura Costeira (CCC) 9, a concluir em 2010, é um bom exemplo dessas dinâmicas de patrimonialização em rede. Promovido pela Mútua dos Pescadores, uma sociedade cooperativa de seguros com uma invulgar sensibilidade para as questões da Cultura do Mar, o projecto CCC é desenvolvido por sete parceiros locais e três parceiros internacionais (dois noruegueses e um espanhol), entidades a que se juntam dois departamentos de universidades portuguesas.
Os principais objectivos deste projecto, baseado numa utopia construtiva de envolvimento das comunidades marítimas nas problemáticas do património e da identidade, apontam para a formação de uma rede de inventariantes locais do património marítimo-fluvial. Trata-se de uma iniciativa de certo modo espontânea, ainda que intermediada por actores institucionais com interesses diversos quanto ao uso do património.
A adaptação das comunidades de pescadores a uma ética da conservação tendencialmente imposta e a sua sobrevivência num quadro fortemente restritivo de acesso aos recursos acabaram por avivar a expressividade das culturas marítimas de âmbito local.
Embora reactiva, esta dinâmica social não obedece aos esquemas clássicos (estruturalista e sindical) de defesa de direitos de trabalho. Antes a animam fins mais amplos de natureza memorial e identitária cuja expressão ocorre num contexto cada vez mais exigente para a negociação que se estabelece entre os activos do mar e os poderes instituídos.
7 Desenvolvemos esta perspectiva no seguinte livro: Economia e Política das Pescas Portuguesas. Ciência Direito e Diplomacia nas Pescarias do Bacalhau (1945-1974), Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006.
8 O investimento mais significativo a esse nível teve lugar no Município de Ílhavo em 1999-2001: a ampliação e remodelação do Museu Marítimo de Ílhavo. O projecto arquitectónico do primeiro museu pós expo-98 expressamente votado à promoção da Cultura do Mar foi assinado pelo gabinete ARX Portugal, cujos arquitectos (José Mateus e Nuno Mateus) haviam desenhado o “Pavilhão do Conhecimento dos Mares” da exposição de Lisboa.
9 O projecto CCC tem como entidade financiadora a EEA Grants (Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu, Noruega) e como instituição co-financiadora a Câmara Municipal de Sines.
Acervos e saberes locais
O movimento de afirmação das comunidades locais enquanto viveiros da Cultura do Mar é, porém, frágil e ainda pouco estruturado. Basta recordarmos a tradição europeia e portuguesa de enquadramento estatal das populações marítimas para concluirmos que, na realidade, as culturas marítimas sempre foram alvos de regulação e mesmo de um certo intervencionismo paternalista.
Em maior ou menor aliança com os actores locais, misturando-se com a comunidade que pretendiam retratar, os etnógrafos foram, desde o século XIX, os principais narradores das comunidades marítimas portuguesas. Os de maior fervor e talento deram a certas comunidades, a exemplo da Póvoa de Varzim, uma aura mítica e uma consciência de si quase superlativas. Ontem como hoje, os primeiros actores e narradores da Cultura do Mar são os próprios homens e mulheres do mar.
O projecto acima mencionado (CCC) e os fins menos abrangentes de diversas associações portuguesas votadas à defesa do património marítimo-fluvial – entidades cujo trabalho assenta, sobretudo, na problemática das “embarcações tradicionais” 10 –, combinam-se lentamente com a dinâmica de projecto de instituições museológicas de âmbito público, com relevo para os museus navais e museus marítimos.
Por razões diversas, os museus tendem a enquistar a sua “missão” – palavra litúrgica que não raro significa ausência de projecto – numa encenação conservadora do passado; num trabalho de conservação pouco aberto às comunidades marítimas e ao questionamento da sua vida colectiva.
Não menos evidente é a necessidade de os museus e outras instituições com responsabilidades no campo do património marítimo reformularem os seus projectos no sentido de uma maior intervenção nos territórios marítimos-fluviais onde habitam.
Importa que os museus sediados em localidades marítimas articulem os seus discursos estáticos e memorialistas com as questões de presente e futuro que inquietam as gentes do mar.
Os museus marítimos carecem dessa agenda de comprometimento em relação às grandes questões da vida marítima contemporânea. Ao assumirem o papel de porta-vozes da escassez de recursos vivos marinhos, ao expressarem dilemas identitários partilhando com o público os limites que se põem no uso de certas tecnologias, os museus tornam-se actores de relevo da Cultura do Mar. Para tanto, precisam de federar os seus projectos mais audazes e aprofundar as suas relações com a sociedade civil. Ambição que o sistema museológico nacional não favorece.
No sentido de promover uma acção partilhada dos actores da Cultura do Mar, a Sociedade de Geografia de Lisboa tem dinamizado plataformas de convergência de iniciativas dispersas pelo “território marítimo português”. A expressão mais visível desse trabalho insistente tem sido a ideia de uma “Rede Nacional de Cultura do Mar”, proposta pela secção de Geografia dos Oceanos em 2002 e reactualizada em ocasiões diversas. A realização mais tangível desse projecto audaz tem sido, até ao momento, a edição digital da “Agenda do Oceano”, uma newsletter de grande utilidade por meio da qual têm sido divulgadas as principais iniciativas relacionadas com a Cultura do Mar programadas pelas mais diversas instituições portuguesas.
Para a maioria dos estudiosos e cultores do património marítimo (ou marítimo-fluvial, como Octávio Lixa Filgueiras o entendeu)11 , o barco é a expressão máxima dos saberes do mar. Segundo este entendimento, uma embarcação, mais a mais se for antiga, rara, ou exemplar de um tipo caído em desuso, reúne em si, no seu significante (a materialidade da peça) e nos seus significados (tudo o que ela encerra de simbólico), o que queiramos tomar por Cultura do Mar. Radicalizando o argumento, diríamos que o princípio e o fim da cultura marítima é o barco, são os barcos.
Por categórica que seja, esta identificação é redutora. Por um lado, quase sacraliza um objecto como portador máximo de uma cultura gizada nas contingências do relacionamento milenar do Homem com os mares. Por outro, tal correlação directa afasta do olhar múltiplas formas de cultura material e simbólica igualmente expressivas dos saberes do mar e capazes de tecer outras narrativas sobre o que declaramos como a Cultura do Mar.
Parece provada a necessidade de regeneração da Cultura do Mar por meio da construção de novas etnografias.
Desde que atentas ao dizer e pensar das comunidades marítimas, assentem elas em projectos patrimoniais ou na criação artística, as etnografias contemporâneas podem reforçar a coesão dos colectivos marítimos.
De que modo? Dando-lhes voz, visibilidade social e protagonismo no processo de Desenvolvimento Sustentável dos eco-socio-sistemas a que pertencem.
10 Em 2010, a principal organização para “preservação, defesa e estudo do património marítimo” dotada de uma lógica territorial (actuante entre Douro e Minho) é a Associação Barcos do Norte, fundada em Viana do Castelo em 2002. Com uma vocação semelhante, embora criada segundo uma lógica de tutela estatal através do Despacho nº 15899 de 20 de Maio de 2008, da Secretaria de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, é a “Marinha do Tejo”. Esta organização discutivelmente vinculada ao Museu de Marinha tem, por ora, propósitos pouco claros e um impacto social e ambiental que só o tempo poderá esclarecer.
11 V. A. Garrido e F. Alves (coord.), Octávio Lixa Filgueiras – Arquitecto de Culturas Marítimas, Lisboa, Âncora Editora, 2009.

13 Para uma breve reflexão a este propósito, v. Mário Ruivo, “Partilhar o Mar para Bem da Humanidade”, Diário de Notícias, 8 de Julho de 1999, pp. 92-95. Num dos registos mais amplos e didácticos sobre a matéria, v. O Oceano Nosso Futuro. O Relatório da Comissão Mundial Independente para os Oceanos, Lisboa, Expo98/Fundação Mário Soares, 1998.
14 Ideia adaptada do seguinte artigo-ensaio: Guilherme D’Oliveira Martins, “A Crítica do Contemporâneo”, Jornal de Letras, 20 Junho-3 Julho 2007, p. 38.
Fotos de arquivo.
