terça-feira, março 23, 2010

O ultimo resistente da beira do rio...

...Um barco é como um filho saído do estaleiro que o concebe, fruto do saber arte e engenho do carpinteiro naval...




Falamos de barcos, falamos de património, falamos de cultura maritima, ou melhor falamos de identidade, falamos de paisagem ribeirinha maritima ou fluvial.

Actualmente o património e a paisagem são dois elementos importantes e indissociáveis das embarcações.

Oceanos, rios e lagos tornaram-se na Pré-história caminhos de água, numa rede operada pelas embarcações, distribuidora de produtos, pessoas e bens, que permitiu fundar a velha Europa, modelo civilizacional que perdurou até hoje.

Com as suas diferentes tipologias, as embarcações pertencem a uma paisagem exclusiva, e são o resultado das produções de uma comunidade humana que lhes deu expressão e representação.

Pertencem à Arquitectura dos lugares ribeirinhos, Marítima ou Fluvial, que é identitária e única.

As embarcações foram o motor da civilização que conhecemos e a que pertencemos. Este é o legado dos nossos barcos.
Para que existam os barcos tem que existir carpinteiros navais. Para existir carpinteiros navais tem que existir estaleiros


Em Bueu existem barcos e existem carpinteiros navais, existe o estaleiro do Purro na banda do rio frente à praia. Muitos esperam a sua morte, vencido pela exaustão dos dias o abandono e o descrédito dos homens.
A negação das memórias vivas.

É tão fácil apagar a memória dos lugares.
Difícil é recuperar
Reconstruir
Dar vida
Continuar a escrita a traços largos da história dos homens e dos seus barcos.

O estaleiro do Purro
Lá na banda do rio é o ultimo resistente.

A história é feita de resistentes. A história é feita de homens e mulheres que acreditam

Falamos de barcos, dos barcos.



Falamos de embarcações de trabalho, construídas em madeira, tornadas obsoletas pelo avanço tecnológico, e pelo esforço de pesca. Falamos de embarcações construídas segundo técnicas apuradas de carpintaria de ribeira aprendida de geração em geração, um saber feito de saber saber, saber fazer. São estas que urge salvar e proteger com a lei, se a lei não serve devemos de contribuir para que se altere, para que sirva os barcos tradicionais e não se sirva dos barcos tradicionais.

Os barcos não sobrevivem sem os seus lugares de nascença.
São como um povo sem terra.
Sem pátria.

Falemos então de identidade.



Temos hoje consciência de que até à geração dos nossos avós (50 anos atrás) as embarcações que hoje dizemos “tradicionais”, eram simplesmente os barcos de trabalho dos homens de então.

Trabalho de pesca, de transporte, de guerra, de pirata, de corsário, de vigilância, de salvamento, de carreira regular entre margens ou carreira entre países ribeirinhos, de lazer, de desporto...

investigadores e cientistas (arqueólogos navais, arqueólogos subaquáticos, antropólogos, historiadores, engenheiros navais e arquitectos navais) estão nos últimos 20 anos, apostados em conhecer o universo destes barcos.

Porquê? – Simplesmente porque se provou, que entre todas as peças do património local, quando em presença de comunidades ribeirinhas, são os barcos que dão a diferença entre cada uma das comunidades humanas, logo são eles que identificam a comunidade.

Hoje, em que se caminha em direcção de uma única Europa e para um futuro global, encontrar as diferenças entre o um e o outro, é garantir a primeira de todas as liberdades fundamentais que a Humanidade conquistou:
o direito a ser diferente, logo a ter identidade.

Continuamos a falar de barcos da identidade dos barcos, logo dos seus locais de origem, os locais de nascença.



Barco

O conceito de barco, entendido como meio de comunicação e de transporte, não é completo se não for entendido também como o meio de pesca e de sustento.

A verdade é que a utilização mais antiga para o barco é a sua capacidade de trabalho e não a de recreio. Assim se a embarcação não “trabalha” acaba também por entrar em declínio e desaparecer, por mais que se contrarie a tendência.

Sobreviveram até aos nossos dias algumas embarcações de pesca fluvial e local, por serem embarcações pequenas e de fácil manutenção. Objectos de interesse cultural, só algumas (poucas) foram salvas, em situação extrema, por Associações culturais e Clubes Náuticos que agora se desdobram a tentar encontrar maneira de as colocar na água novamente… mas já não “trabalham”, não transportam nem pescam.
Com isto perdem-se os gestos, as palavras e os conceitos associados a cada arte náutica onde o barco é tão só a peça mais visível.

Com o estaleiro a situação é a mesma. Perde-se o saber construir, o saber fazer, a prática. Perdem-se os mestres carpinteiros sem barcos…

Falamos então de abandono.


Abandono

Há poucos anos, os barcos, grandes ou pequenos, eram abandonados findo o seu uso, nas praias, margens de rios ou portos, nos locais onde se construíam ou reparavam.
Os estaleiros navais.



Todos os estaleiros tinham por isso a sua lixeira de carcaças de navios, a sua sucata, onde se iam reciclando ferragens e madeiras, que se retiravam sempre que tinham serventia até só restar a carcaça desmantelada, que se não servisse para melhor, sempre dava para alimentar as fogueiras de S. João ou de S. Pedro, os santos masculinos que os pescadores em Portugal mais festejam.

Afinal estas lixeiras eram o cemitério das embarcações...
Mas este abandono não traz agora a substituição com inovação tecnológica.

Traz a morte dos barcos e das comunidades ribeirinhas a eles associados.

Com o progresso e o novo ordenamento do território e das frentes ribeirinhas, a par da falência desastrosa do sector das pescas e de boleia neste, do da construção e reparação naval, os velhos lugares destes cemitérios, considerados, sujos e perigosos, deram lugar à especulação imobiliária e a empreendimentos habitacionais ou turísticos, ou ainda à “renaturalização” da margem, agora semeada de relva.

A par dos barcos perdem-se a memória desses lugares ribeirinhos, abandonados em nome do cosmopolitismo.

Ainda falamos de embarcações tradicionais…


Os investigadores usam várias fontes de informação para os seus estudos:


Entrevistam pessoas, consultam os Arquivos históricos, comparam fotografias antigas, interpretam a iconografia (pintura, desenhos, modelos à escala…), analisam a bibliografia e estudam os ex-votos religiosos.

Mas a melhor informação continua a ser a do próprio barco original.

O mesmo se passa com o estaleiro. O melhor estaleiro, aquele que nos ensina, aquele que atravessa a espessura do tempo é o estaleiro original.
A par do barco são o símbolo individual de cada comunidade ribeirinha.
Resultam do apurar de milénios de conhecimentos artesanais, saberes do Saber-saber, do Saber-fazer e do Saber-ser: modos e usos do dia-a-dia de outrora, saberes náuticos e ribeirinhos.

Por isso o barco ou o estaleiro devem ser entendidos individualmente, pois cada um é único no seu lugar.
Verdadeiros contentores de informação histórica,

São já poucos, é tempo de falar de extinção.

Extinção

O cosmopolitismo actual, com a sua voraz modernidade tecnológica, condenou as embarcações tradicionais, movidas à vela, a remo ou à vara, ao absolutismo técnico e assim ao seu desuso.

Com o desuso continuado virá a extinção.

Poucas pessoas, individualmente ou institucionalmente, perceberam até algum tempo atrás o drama desta extinção.

Não é a apenas o barco que se perde. É tudo o que está com ele, dentro dele, antes e depois dele.

Num barco, as diferenças são muitas entre estar como tripulante ou como passageiro.
Ao primeiro exige-se conhecimento técnico e experiência pessoal, ao segundo apenas a vontade de lá estar.
E é aqui que reside o maior problema para a extinção.
Quando um barco pára, poucos se dão conta, mas o tripulante, esse, sofre as consequências da perda do seu barco.
Aqui a mudança não dá lugar a novas formas de continuidade.
Quando um barco “tradicional” pára não é para ser substituído, é para morrer. Por isso o tripulante também pára. Quase sempre também definitivamente.

Afinal, perdemos com este parar os últimos 2500 anos de informação histórica, tecnológica, empírica e cultural.

Urge falar de inventários.

Universidades, Associações e Investigadores apostados em conhecer o universo destes barcos criaram normas para o seu estudo: levantamento, tipologia, inventário.

Buscam o legado material da cultura dos barcos, marítima ou fluvial, piscatória ou agro-piscatória.

Barcos de rio, de fundo chato e barcos de mar, de quilha e cadaste. Barcos simétricos, de proa e popa levantados em rodas, ou barcos cortados, de proa e popa em painel, como as masseiras de amassar o pão de milho. Barcos de casco forrado a tábuas a topo ou a tábuas trincadas umas sobre as outras. Barcos só à vara ou só a remo nos rios. Barcos de velas bastardas ou de velas latinas, nos rio e no mar.
Barcos que no passado recente trabalharam nas fainas do pilado e do sargaço e nas safras da sardinha. Que ora mataram a fome nos acejos da Primavera, ora a vida, nos naufrágios de Inverno.

Para além das tipologias das diferenças, o que resumia um barco, era ser uma extensão da própria família. Frequentemente passava de pai para filho e sucessivamente, de geração em geração.
Madeiras novas, velas novas, peças novas, reconstrução em cima de reconstrução.
Mas sempre o mesmo nome, o mesmo modelo naval com os mesmos defeitos e qualidades.
Um barco só morria verdadeiramente quando naufragava.
Esta era a morte do barco. E só morre o que tem vida. Nas comunidades ribeirinhas, o barco e as pessoas, são entidades, com vida depois da vida.


Falamos de sobrevivência

Aquilo que nos escapa frequentemente é que os barcos não existem sem as comunidades humanas que lhes deram origem e identidade, e que essa relação é recíproca.
Esse é o elemento da sobrevivência.


Fotografias de Arquivo 2003 de João Baptista
Lançamento à água da Traineira construida no estaleiro do Purro, Bueu em 12 de Agosto de 2003
mais informação sobre o estaleiro e sobre o seu futuro aqui: http://www.culturamaritima.org/node/14280